A Visão Puritana das Escrituras (parte final)

• Visão Puritana das Escrituras (parte 1)


Uma Análise do Capítulo de Abertura da Confissão de Fé de Westminster
Por Derek Thomas


O Testemunho Interior do Espírito
Seguindo Calvino, a Confissão enfatiza o testemunho interior do Espírito Santo (o testimonium internum Spiritus Santi). Apesar de todas as evidências da autoridade das Escrituras, o homem precisa da preparação interior do Espírito para convencê-lo da sua confiabilidade: "... contudo, a nossa plena persuasão e certeza da infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo que, pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações" (Cap. I p.V). A razão para tal não é difícil de se achar. O pecado dentro em nós, a tendência anti-Deus que está enraizada em cada um é um legado recebido de Adão que tem um efeito sobre nossas mentes assim como sobre nosso comportamento: ela produz uma insensibilidade para com a verdade; a isso a Bíblia chama de cegueira ou dureza de coração. Assim como a luz de nada serve para um cego, a Bíblia permanece um livro fechado até que o Espírito Santo o abra. É a verdade exposta por Paulo em I Co 1. Nas palavras de Calvino: "Se nós desejamos providenciar o melhor caminho para nossas consciências — para que elas não fiquem perpetuamente tomadas pela insensibilidade da dúvida ou do vacilo, e para que elas também não hesitem diante das menores discussões — temos que buscar nossa convicção num lugar mais elevado de que razões, julgamentos ou conjecturas humanas, isto é, no testemunho secreto do Espírito" (Institutas I. 4). Esta é uma ênfase que é novamente repetida no capítulo que trata da Fé Salvadora (14). Refletindo sobre o que a Escritura nos diz de como o coração de Lídia foi aberto para que ela cresse, a Confissão da mesma forma enfatiza que "a graça da fé, por meio da qual os eleitos são capacitados a crer para a salvação de suas almas, é obra do Espírito de Cristo nos seus corações...” (14.I.).
Bem no começo da Confissão, encontramos uma ênfase na obra do Espírito Santo: na inspiração e preservação da Palavra de Deus, junto com a necessidade da obra do Espírito em convencer o não crente da credibilidade e do significado da Bíblia. Já que a Confissão é comumente criticada por sua omissão de um capítulo sobre o Espírito Santo, estes pontos precisam ser trazidos na mente. Hoje em dia, a Igreja poderia desejar da Confissão uma afirmação mais clara sobre os dons do Espírito, e possivelmente sobre o batismo do Espírito, mas estas não eram questões de controvérsias no século XVII. Em essência, cada aspecto da obra do Espírito é abordado.

Suficiência
Numa outra seção (L VI), elaborando mais adiante sobre a necessidade da iluminação interior do Espírito de Deus como necessária para o entendimento salvífico das coisas como são re- veladas na Palavra, a Confissão acrescenta uma exposição sobre a suficiência das Escrituras.
"Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressa- mente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens ... " (Cap. I, p.VI).
Duas questões estão por detrás desta afirmação: primeiro, a posição de Roma em reclamar a autoridade da Igreja em matéria de fé e vida; segundo, a tendência dos anabatistas de citar novas revelações do Espírito como algo normativo da fé e comportamento cristãos. A implicação desta afirmação para o fenômeno carismático moderno dificilmente poderia ser mais relevante. Reivindicações de revelações diretas e imediatas do Espírito não têm lugar no pensamento dos teólogos de Westminster.
Várias questões emergem desta afirmação:
I) A Bíblia é completamente adequada para governar cada área de nossas vidas.
II) Sobre a questão da consciência cristã, nós não temos o direito de ir além do que a Escritura claramente colocou. Trata-se de uma imposição, insistir na obediência a qualquer lei feita pelos homens.
III) A Palavra de Deus é a única regra para nos guiar na fé e na vida. Por conseqüência a própria Confissão não deve ser colocada ao lado, muito menos acima das Escritura; A Confissão são padrões subordinados cuja autoridade apenas é derivada da sua conformidade àquilo que diz a Escritura.
IV) Nem tudo que precisamos saber é achado explicitamente e afirmado nas Escrituras. Algumas coisas devem ser inferi das por "boa e necessária conseqüência das Escrituras. Assim as doutrinas da Trindade, batismo infantil e o direito das mulheres de participarem no ceia do Senhor são todas deduzidas das Escrituras. A Bíblia não nos dá descrições mínimas e detalhadas de cada detalhe da vida. No culto, por exemplo, a Bíblia nada tem a dizer sobre horários de culto ou coisas como roupa, ordem de culto, as versões das Escrituras a serem usadas. Aqui nós devemos usar nossas mentes renovadas, ordenadas pelo Espírito Santo, usando tudo que a Bíblia diz, como um guia.

Clareza
Talvez seja a doutrina da clareza da Escrituras, agora muito negligenciada, porém ainda conservada na teologia Protestante, que parece ter um lugar de honra na Confissão de Westminster.
"Na escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em uma ou outra passagem da Escritura são tão claramente expostas e aplicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas" (Cap. 1. p.VII).
A razão para esta ênfase não é difícil de entender. Eles sabiam que existem partes nas Escrituras que seriam difíceis de entender. Jesus não disse que as parábolas seriam dadas para que aqueles que as ouvissem não pudessem entendê-las? (Marcos 4:11-12). Não foi Pedro que disse que achou alguns trechos de Paulo ininteligíveis? (11 Pe 3: 15 -16). É verdade! Porém, os reformadores queriam afirmar algo importante: que cada cristão tem acesso à verdade da Palavra de Deus. Em outras palavras, por detrás desta doutrina da clareza da Escritura está a igual mente importante verdade do período da Refor- ma: o sacerdócio de todos os santos.
Tendo exatamente derrubado o Papa do lugar de autoridade, a Igreja Protestante foi confrontada com o dilema: "Como saber que você entendeu corretamente a mensagem de Escritura a menos que tenha uma interpretação autorizada?". A resposta está na clareza das Escrituras: a mensagem da Bíblia é essencialmente clara. Ao dizer que a Bíblia é "clara", a Confissão está dando uma descrição geral de toda a Escritura, ao invés de sua partes individuais; está falando das principais doutrinas, mais do que da exegese de um versículo em particular. Enquanto Roma apontava para as sucessões dos sacerdotes como intérpretes da verdade, a Igreja Protestante apontava para a Bíblia como um livro para o povo, capaz de ser compreendido pelas pessoas através do uso dos "meios ordinários". Isso foi, é claro, uma "bomba"; isso queria dizer que a maneira de conhecer a Deus e viver para Ele era dar a devida atenção à leitura da Bíblia e à pregação bíblica. Isto é parte da própria essência da Reforma Protestante.

Transmissão
A próxima seção trata da transmissão das Escrituras. Dois pontos são desenvolvidos.
1. A inspiração das Escrituras diz respeito aos autógrafos originais e não a qualquer tradução dos mesmos.
2. As cópias dos originais foram mantidas puras em todas as gerações pelo singular cuida- do e providência divinos.
Esta afirmação não quer dizer que nenhum erro tenha se infiltrado em qualquer um dos manuscritos existentes em nossa possessão. E também não quer dizer que qualquer dos textos originais existe de forma completa e inerrante em qualquer dos manuscritos. O que a afirmação faz referência é que Deus por meio de Seu cuidado e providência singulares, nos proporcionou um número enorme de testemunhas (no caso do NT mais de 5.000: alguns dos Clássicos têm apenas uma!); que existe uma consistência assombrosa entre eles (somente uma referência em mil tem alguma dúvida). Nas palavras de B.B. Warfield:
"Ele tinham a intenção de asseverar que as várias leituras nas várias cópias não evitaram a presença do texto absolutamente puro na multiplicidade de cópias".

Isso quer dizer que a Igreja, pelo uso devido de comparação de manuscritos e análise, pode chegar ao texto verdadeiro e "Admite-se em todos os lados que 98% do texto do NT está além de qualquer disputa e os 2% onde existe algum questionamento real não abalam a certeza de qualquer doutrina Cristã, qualquer que seja a interpretação preferida".[1]
Um ponto importante freqüentemente esquecido é que, para os teólogos de Westminster estava clara a obrigação da Igreja de providenciar para o povo uma tradução "na língua vulgar de cada nação". Seguindo a descoberta de que o próprio Novo Testamento fora escrito em grego comum, ao invés do grego clássico dos acadêmicos, houve um ímpeto de traduzi-lo no idioma moderno daqueles dias. A versão King James (Rei Tiago, de 1611) é baseada no exame dos manuscritos e versões antigas à disposição naquele tempo, no entanto se deveria perceber que os teólogos de Westminster não mencionaram a Versão Autorizada, nem o Textus Receptus (um termo latino que significa "o texto recebido" — apesar de nunca ter sido recebido por qualquer igreja ou reunião ecumênica, ele serve de base para o texto da Versão Autorizada) como o único texto digno de análise. A Nova Versão King James (NKJV) de 1983 usa os mesmos textos base que a King James, porém usa variações de notas de rodapé de outras fontes. Também se tenta traduzi-la de forma mais fiel ao inglês correntemente usado. Ambas as traduções tendem a uma abordagem da "equivalência dinâmica" favorecida pela Nova Versão Internacional de 1978 (New International Version). A Confissão de Fé de Westminster, no entanto, reflete uma convicção Protestante sobre a necessidade de se fazer traduções das Escrituras que sejam fiéis ao original e que sejam compreensíveis por parte daqueles que as lêem.
Uma outra verdade de grande significação emerge no capítulo de abertura: a verdade que sublinha o princípio hermenêutico reformado que "A regra infalível de interpretação da Escritura é a própria Escritura" (Cap. I, p. IX). Se a Bíblia é o produto do sopro de Deus, como a Confissão insiste, e já que Deus não pode mentir (Hb. 6: 18), segue-se daí que cada palavra por Ele expirada não contém erro (é inerrante). Isto quer dizer que nenhuma parte da Escritura pode contradizer outra parte da Escritura. Ao lermos a Bíblia, este princípio — de que temos o compromisso de harmonizar o que encontramos numa passagem com o que encontramos noutra — tem que prevalecer. "A Escritura não pode falhar", disse Jesus (Jo 10:35) — literalmente: ela não pode ser "fragmentada" ao colocar-se uma passagem em conflito com outra.
O que isto quer dizer é que ao lermos a Bíblia, temos que permitir que outras passagens lancem luz sobre a passagem em mãos. Quanto mais você souber do restante da Bíblia, mais clara se tornará a passagem corrente para você. Freqüentemente uma passagem que, inicialmente parece obscura, pode tornar-se mais clara porque alusões a algo semelhante são feitas em um outro trecho.

Uma Palavra Final Sobre a Autoridade da Escritura
O primeiro capítulo da Confissão termina com uma afirmação que ressalta a autoridade das Escrituras em solucionar cada discussão teológica.
"O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura" (Cap. I p. X).
É uma mensagem primariamente dirigida contra Roma, mas ela pode ser igualmente aplicada às tendências correntes no ensino evangélico. Como já notamos, clamores de que os dons de profecia e línguas existem hoje, devem ser confrontados com o fato de que estes dons eram formas de revelação, acompanhadas de toda autoridade de tais revelações. Reivindicar a fórmula "Isto é o que diz o Senhor", como fazem os carismáticos, formalmente implica numa reivindicação de uma revelação divina. "Em princípio existe alguma diferença entre um protestante afirmar pronunciar revelações imediatas através de profecia e línguas interpretadas, e um Católico Romano afirmar as revelações por meio do ofício de ensino da igreja?", pergunta Sinclair Fergunson? A aproximação entre “cristãos carismáticos” Protestantes e Católico-Romanos sugere que esta visão é frequentemente compartilhada de forma inconsciente.[2] Ela apenas sublinha quão continuamente relevante é o capítulo de abertura da Confissão de Fé de Westminster no final do século vinte.


[1] Rowland S. Word, A Confissão de Westminster para a Igreja Hoje (Igreja Presbiteriana do Leste da Austrália, 1992), p.21

[2] “Como a Bíblia Olha Para Si Mesma”, em Inerrância e Hermenêutica: Uma Tradição, Um Desafio, Um Debate editado por Harvie M. Conn (Daker, 1988), p.61

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